Javier Milei vence peronismo e é eleito novo presidente da Argentina

Javier Milei vence peronismo e é eleito novo presidente da Argentina
Publicado em 19/11/2023 às 20:36

Valor Investe

Os argentinos elegeram Javier Milei, fundador do La Libertad Avanza (LLA), como o novo presidente do país, durante segundo turno que aconteceu neste domingo (19). A vitória foi sobre o candidato Sérgio Massa, atual ministro da Economia do país.

Com mais de 90% dos votos válidos apurados, Milei obteve 55,86% contra 44,13% de Sergio Massa.

Massa reconheceu a derrota logo após a divulgação dos primeiros números. “Javier Milei é o presidente eleito pela maioria dos argentinos para os próximos quatro anos. Foi uma campanha muito longa e difícil, com conotações duras e espero que o respeito por quem pensa diferente seja estabelecido na Argentina”, disse em seu discurso.

Trajetória

Autodenominado anarcocapitalista, Javier Gerardo Milei, fundador do La Libertad Avanza (LLA), é um defensor das forças irrestritas dos mercados e do comércio, da primazia da propriedade privada e de um Estado mínimo.

Com uma plataforma polêmica, que prevê a dolarização da economia, o fechamento do Banco Central e o expurgo “da casta política”, Milei busca colocar fim ao peronismo representado pelo ministro da Economia e candidato, Sergio Massa.

Com 53 anos, Milei tem uma trajetória política meteórica. Foi eleito a deputado por Buenos Aires em sua primeira eleição, em 2021. Seu partido, o LLA, tem apenas dois anos de existência.

Ele se tornou um fenômeno político na Argentina quando começou a participar de programas de debate na TV, nos quais as regras éticas do jornalismo costumam ser ignoradas e a incontinência verbal predomina.

“É um formato que fomenta ataques pessoais, impede o debate de ideias e elimina as barreiras da boa educação e o bom gosto, dando lugar à escatologia, ao insulto e à violência verbal”, diz o sociólogo Gabriel Puricelli, vice-presidente do Laboratório de Políticas Públicas e professor da Universidade de Buenos Aires (UBA).

Construiu um personagem combativo, verborrágico, gritão, polêmico, antifeminista e misógino. O mesmo que o catapultou ao cenário eleitoral e captou a atenção dos eleitores descontentes com a corrupção, a inflação, os salários baixos, a falta de perspectivas de melhora pessoal futura, a piora da qualidade de vida, o aumento da desigualdade, a instabilidade econômica.

No país que acalenta o sonho da estabilidade da moeda, sua principal proposta é a dolarização da economia.

Também capitalizou o sentimento dos reacionários, contrários aos avanços dos direitos individuais. É contra o aborto, a educação sexual nas escolas e as políticas de direitos humanos. Porém, surpreende ao afirmar que não tem problema com as relações homossexuais, mas condena o casamento homoafetivo como instituição.

Por outro lado, desqualifica o economista John Maynard Keynes porque “era homossexual e, como tal, vivia separado do mundo das pessoas comuns com o dos agentes da economia real”.

Solteiro empedernido, Milei namora a humorista Fátima Flores, sem aparentes planos de se casar. Vive com quatro cães clonados a partir do DNA de seu cachorro de estimação Conan, um mastim inglês que morreu com 13 anos.

No discurso de vitória nas primárias de agosto, ele agradeceu aos seus “filhos de quatro patas” que levam nomes de economistas conservadores: Milton Friedman, Robert Lucas e Murray Rothbard.

Estudou em instituições privadas, da pré-escola ao ensino superior, e promete acabar com o ensino público — que atende a maioria da população. Se formou na Universidade de Belgrano, fez dois mestrados no Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social (IDES) e na Universidade Torcuato di Tella, uma das mais caras do país.

Segundo a biografia não autorizada, escrita pelo jornalista Juan Luis González, o economista foi criado em um ambiente de violência física e verbal, em Palermo, bairro de classe média alta de Buenos Aires. Tinha apoio somente da avó materna e da irmã mais nova, Karina, que o acompanha sempre.

No colégio particular Cardenal Copello de Villa Devoto, outro bairro de classe média alta, onde cursou o ensino médio, o chamavam de “El loco” (o louco), título do livro de González. O apelido veio dos ataques de ira e linguagem agressiva de Milei.

Um ex-colega de Milei contou ao Valor que durante reunião da companhia onde trabalhavam com bancos para discutir investimentos para um projeto, ele chamou um importante executivo de um banco internacional de “burro”. “Se alguém faz uma pergunta que ele considera pertinente, dedica muito tempo em responder e explicar bem, mas se a pergunta não é inteligente, ele se irrita. Tem rompantes e humor instável.”

Desde 2014, escreveu 10 livros sobre política e economia. O último é “O fim da inflação”, lançado no início deste ano. Milei enfrenta três acusações de plágio de algumas de suas publicações.

Foi professor universitário e trabalhou como economista no banco HSBC e em várias consultorias. O último emprego foi como analista de risco de projetos de investimentos da Corporación América (2010-2021), de um dos empresários mais ricos da Argentina, Eduardo Eurnekian.

O empresário se afastou de Milei por causa dos ataques verbais que ele desferiu contra o papa Francisco, segundo informa fonte próxima de Eurnekian.

O empresário também é contra à proposta de dolarização. Na Corporación América, a fonte relata que Milei se destacava em fazer projeções para os novos negócios. “É muito bom para os números, é muito trabalhador e honesto.”

Sobre o temperamento explosivo, essa fonte afirma que ele “sempre foi um fundamentalista de suas ideias”.

Em uma entrevista ao <strong>Valor</strong> durante a campanha presidencial de 2019, Milei foi educado, tranquilo, inteligente e demonstrou conhecimento sobre a economia mundial e local. Uma imagem completamente distinta da conhecida pela TV e em sua atual campanha.

Durante a campanha, Milei criou várias polêmicas, por exemplo, afirmou diversas vezes que não teria relações com o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, apesar de o Brasil ser o principal destino das exportações argentinas. E nem com país “socialista, como a China”, o maior credor individual da Argentina. Também prometeu acabar com o Mercosul.

Amigo do deputado Eduardo Bolsonaro, o argentino considera que “Lula vai destruir o país”. Para uma amiga próxima de Milei ouvida pelo Valor, a amizade com Bolsonaro “é assustadora”. Assim como o ex-presidente Jair Bolsonaro, Milei é a favor da liberação do porte de armas.

O candidato não defende claramente a ditadura militar argentina, bandeira que deixou para a sua vice, Victoria Villarruel. Ambos acusam as organizações de Direitos Humanos de “exagerar” no número de vítimas do terrorismo de Estado.

Em suas participações na TV cita nomes de pensadores pouco conhecidos no país, como o economista Murray Rothbard, e o fundador da Escola Austríaca de Economia, Ludwig von Mises. “Rothbard, autor de cabeceira de Milei, defende a mercantilização de todas as formas da vida social, incluídas as relações familiares”, disse o sociólogo Gabriel Puricelli.

Embora o discurso de Milei represente a direita mais extrema, tem poucos pontos em comum com programas de outros extremistas de direita, como Donald Trump, Jair Bolsonaro, José Antonio Kast (Chile) e Matteo Salvini (Itália). “É muito mais dogmático, menos oportunista e menos flexível que outros líderes que o veem com simpatia e, à diferença destes, carece a priori de qualquer estrutura organizacional para pôr um governo em pé”, avalia Puricelli.

Os líderes de extrema direita não buscam o desmantelamento do Estado, como Milei ameaça fazer com uma serra elétrica para cortar ministérios como os da Saúde, Educação e Cultura, institutos de pesquisa, além do BC.

O discurso de Milei é livresco, cheio de frases memorizadas de textos. Ele não usa as formas de demagogia e a linguagem pouco sofisticada de Trump ou Bolsonaro.

“Se tem algo que une a direita e a esquerda na Argentina é a defesa da soberania das Ilhas Malvinas, mas Milei é contra essa postura histórica”, observa a doutora em Ciências Políticas, Carolina Barry, especialista em Peronismo.

Diferencia-se ainda da direita tradicional ao não exaltar a família e seus valores. Ele também desqualifica o papa Francisco, enquanto os conservadores são cuidadosos com os temas relacionados às religiões ou assumem a bandeira do “cristianismo ocidental”.

Milei quer se converter ao judaísmo. Estuda a Torá com um rabino conhecido — Axel Wahnish. Em setembro, apareceu no Latam Economic Forum acompanhado pelo rabino Tzvi Grunblatt, diretor da fundação Jabad Lubavitch Argentina, muito influente na comunidade.

“Não acredito que ele consiga se converter em judeu”, disse uma amiga, que prefere não revelar o nome. Para ela, trata-se apenas de uma jogada política.

A governabilidade será um dos grandes desafios de Milei, que precisará mostrar habilidade para costurar alianças, já que não terá maioria no parlamento com 257 cadeiras de deputados e 72 de senadores.

“O maior problema parece ser a capacidade política de levar adiante suas propostas, dado que não terá nem um terço no Congresso”, afirma o cientista político Ignacio Labaqui, professor da Universidade Católica da Argentina, e analista sênior da consultoria Medley Global Advisors.

Além disso, a aliança que negociou com a candidata derrotada Patrícia Bullrich e o ex-presidente Mauricio Macri, com vistas a obter votos para o segundo turno, provocou uma crise interna na LLA.

Milei perdeu cerca de 20 deputados eleitos por Buenos Aires e outras províncias que consideraram a aliança uma traição aos princípios “anti-casta”.

Mas uma fonte da Corporación América que o conhece bem afirma que Milei é “bom negociador, prático, inteligente e ganha pelo cansaço”. Por isso, teria condições de negociar com o Congresso.

Milei costuma disparar farpas contra os jornalistas ao dizer que são todos “filhos da pauta”, que em espanhol significa publicidade. Usa frases conhecidas pelos brasileiros ao afirmar que ele, sua equipe e eleitores são “pessoas de bem”. Um argumento usado por Bolsonaro para dizer que de um lado está o povo, do outro lado estão os privilegiados.

“É o recurso típico dos líderes populistas, um exemplo perfeito de liderança populista”, diz Labaqui, referindo-se à divisão do campo entre cidadãos e a “casta política, culpada por todos os problemas”. Com este pensamento, Milei propõe uma espécie de “refundação” de tudo, acrescentou.

A falta de experiência política e de administração pública do outsider assusta economistas e empresários no país.

“Há um clima de medo, claro”, diz um importante empresário colecionador de arte. “Pode atropelar as coisas e causar um desastre, não tem experiência e sua atitude é incendiária.”

“Não o vejo nem como economista, e como presidente não o vejo com robustez necessária para o cargo”, opina um importante ex- representante da Argentina junto a diversos organismos financeiros internacionais. Para ele, “as ideias de Milei são antiquadas”.

A saúde mental de Milei também é fonte de preocupação. No último debate, Massa revelou passagem de Milei pelo Banco Central que não consta em seu currículo e insinuou que o contrato dele não foi renovado por problemas mentais.

Em uma entrevista concedida por Milei na noite de quinta-feira (16) ao canal A24, ele apresentou um comportamento errático que foi qualificado por especialistas como um surto psicótico.

Teve gestos estranhos e exagerados, fez muitas pausas longas durante a argumentação, e o tom de voz sofreu mudanças repentinas. Além de expressões faciais estranhas. Milei chegou a falar que ouvia vozes quando o auditório se encontrava em total silêncio e chegou a chorar.

A frase preferida de seus fãs é “Viva a liberdade!”. Ex-goleiro do time de segunda divisão Chacarita Juniors e ex-líder de uma banda de rock que tocava covers dos Rolling Stones, Milei atrai especialmente os jovens e tem forte apoio dos eleitores nas províncias, fora da Grande Buenos Aires — reduto de peronistas e macristas.

Em seus programas na TV já confessou a prática de sexo tântrico e se diz entusiasta de cosplay (uso de fantasias e acessórios de um personagem).